GOTAS 39
Quando menos esperavamos, começou a Copa do Mundo no México. A televisão soviética não transmitia todos os jogos assim tentávamos escutar no radio as transmissões em alguma outra língua estrangeira. Acontece que os aparelhos que tínhamos nos quartos, só tinham uma estação, a oficial. Os companheiros que tinham namoradas iam para a casa delas a procura de rádio que pegassem estações estrangeiras para depois nos dar as noticias.
O futebol virou argumento de todas as conversas em todos os lugares que estávamos. Logo um dos nossos colocou um problema em discussão: se o Brasil ganhasse ia ser uma vitória da ditadura. Pra quê! Foi uma crise geral. Nenhum de nós tinha pensado nisso, preocupados em demonstrar que éramos os melhores no campo. E, antes que os estrangeiros começassem a nos cobrar, fizemos uma reunião. Nem se discutiu muito. Nei, o nosso chefe, com muita autoridade disse que “seria uma vitória do povo brasileiro, não dos militares” e continuou citando quantos e quais jogadores tinham vindo da “estrada, eram de origem pobre” e que “próprio porque tem uma ditadura o povo precisa dessa vitória”. ...
Era isso que nós queríamos, alguém que nos convencesse que podíamos torcer pela seleção, apesar da ditadura. Aceitamos imediatamente e continuamos a esperar o resultado dos jogos.
Como imaginávamos, alguns estrangeiros, principalmente latinos, colocaram o problema também. “O uso pela ditadura a próprio favor, de uma nossa possível vitória”, virou discussão em todas as mesas do bar do instituto onde tinha um brasileiro. Nós já estávamos preparados para responder. Depois da reunião com o chefe do grupo, outras em menor escala tinham aprofundado o argumento assim tínhamos várias respostas na ponta da língua. Estudantes de outros países aproveitaram das nossas respostas para torcerem conosco sem constrangimento.
Os estudantes dos países “em via de desenvolvimento” que não participavam da copa, torciam pelo Brasil. Da Europa, dinamarqueses e finlandeses exultavam pela seleção. Os franceses torciam contra nós e os argentinos nos ignoravam, e isso pouco nos importava: era tudo inveja... Alguns me perguntavam por quem eu ia torcer já que o ultimo jogo ia ser contra a Itália. Era só o que faltava!
Para esse ultimo jogo, que ia ser transmitido pela televisão, nós preparamos bem. Caixas e caixas de cerveja foram compradas e colocadas na geladeira. Latinos, dinamarqueses e finlandeses vieram torcer conosco. Depois de tanto exibicionismo de nossa parte lá pelo Instituto, não podíamos perder. Estávamos nervosíssimos e engolíamos azeitonas, salsichas e presuntos com cerveja, sem parar. No primeiro gol do Brasil, quase o edifício vem abaixo. Gritos histéricos, abraços, pulos e mais pulos em cima de cadeiras e sofás. E tome mais cerveja. Outro gol, outros gritos, abraços e pulos. “O nosso povo está feliz, apesar de tudo”, disse alguém para justificar toda essa alegria na frente dos estrangeiros.
Os europeus ali presentes, que, como nós, gostavam de cerveja, já se comportavam como brasileiros. Gritavam, pulavam e nos abraçavam como se tivéssemos ganhado uma guerra, derrotado a ditadura. Começaram a aparecer as primeiras cadeiras quebradas, que foram logo substituídas. O único gol da Itália foi motivo de critica aqueles “reformistas”.
A vitória da seleção causou a quebra de sofás também. Enquanto gritávamos e pulávamos nem notávamos os estragos que estávamos causando. A cerveja acabou e apareceu vodka, rum, de tudo, além de aumentar o numero de bêbados. Mesmo assim, ou, próprio por estarmos nessa condição, ainda decidimos que iríamos para o Instituto como uma escola de samba, fazendo batucada pela rua.
Não sei de onde apareceu tanto instrumento. No dia seguinte, todos os 40 alunos brasileiros saíram batucando, cantando e dançando no meio da rua, felizes da vida, com os dinamarqueses e finlandeses atrás. Os argentinos passaram por nós, mas fingiram não nos conhecer. Muitos outros companheiros nos parabenizaram pela vitória.
Na rua ninguem entendeu aquela barulhada.
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