sexta-feira, 14 de março de 2014

ANATOMIA DA CRISE NA UCRÂNIA COM PROPOSTAS PARA EVITAR A GUERRA

                                 


Anatomia da crise Ucraniana: entender as causas, propor soluções [1] 


                             O professor e pesquisador Fabiano Mielniczuk analisa a crise na Ucrânia. Fabiano é Doutor em Relações Internacionais pelo IRI/PUC-Rio, Diretor da Audiplo: Educação e Relações Internacionais, professor da Uniritter (Porto Alegre) e pesquisador do Grupo de Pesquisa sobre Potências Médias (GPPM).


A situação da Ucrânia é séria. Muitos falam do risco de uma guerra civil que leve à divisão do país entre as áreas ocidentais e a parte leste, habitada por russos. Esse risco agora é mais iminente, com a ocupação da Criméia por grupos paramilitares pró-Russia e a realização de um plebiscito para que a população decida se a região deseja ser anexada pela Rússia ou não.

Os analistas que apóiam a aproximação da Ucrânia à UE afirmam que o pano de fundo para os protestos que levaram ao Golpe que derrubou Yanukovich foi a situação econômica do país. Com uma mentalidade dos anos 1990, reiteram que a única alternativa à Ucrânia seria a de aprofundar os laços econômicos com a UE, liberalizando (ou melhor, modernizando, no discurso oficial) sua economia e promovendo maior interdependência com a Europa como forma de fugir das chantagens econômicas russas. Entretanto, após o colapso econômico de 2009, quando a economia recuou 19% em razão da crise mundial de 2008, a Ucrânia tem tido níveis de crescimento compatíveis com os dos demais países europeus. Por outro lado, parece pouco provável que depois do vergonhoso resultado eleitoral de 2010, no qual o candidato à reeleição e líder da Revolução Laranja, o pró-ocidental Victor Yushenko, obteve aprox. 5% de votos no primeiro turno, a população da Ucrânia fosse optar por uma ruptura institucional violenta que colocasse no poder líderes que vêem o FMI como salvação para a economia do país (o mesmo FMI que rompeu um acordo de empréstimo de 15 bilhões de dólares com a Ucrânia, em 2010, após Yushenko aumentar o salário e as pensões dos ucranianos).

Parece que as causas para a crise ucraniana são mais complexas. Deve-se considerar, pelo menos, três fatores.  Em primeiro lugar, a incapacidade do governo Yanukovich de resolver os problemas de transição para uma economia capitalista que o país enfrenta desde sua independência, em 1991, e que foi agravado pelas promessas de ganhos econômicos não cumpridas do período pós-revolução laranja de 2004. A falta de transparência na gestão do país e um ambiente corrupto para os negócios também entram nesse cenário de problemas não resolvidos. A segunda causa diz respeito à uma tendência em toda a Europa, a ascensão de movimentos nacionalistas, com feições nazi-fascistas. Na Ucrânia essa tendência se materializou no partido Svoboda, que alcançou em torno de 10% do apoio da população nas últimas eleições parlamentares. Com um discurso baseado na xenofobia e na pureza nacional, contra russos e contra judeus, os adeptos desse partido fizeram parte de uma facção chamada “setor de direita”, que esteve na vanguarda violenta dos movimentos na praça Euromaiden. Por último, deve-se ressaltar o papel da UE, que estimulou a população da Ucrânia a tomar as ruas após o fracasso das negociações de adesão do país a um acordo de livre-comércio com a Europa. Essa postura de ingerência externa da UE nos assuntos ucranianos, explícitos nas inúmeras declarações de Durão Barroso, acendeu o pavio para a explosão de uma bomba.

EUA e UE x Rússia, e a Ucrânia no meio…

Depois de ter acendido o pavio, a UE foi ingênua (ou cínica) ao negociar com opositores que não tinham legitimidade frente aos extremistas. Durante as manifestações, a extrema direita tomou conta da situação e passou a expulsar manifestantes pacíficos dos prédios ocupados. A facção chamada “setor de direita” foi fundamental para isso. Existem, inclusive, laços dos nacionalistas ucranianos com grupos paramilitares que lutaram na Chechênia contra os russos, e a confirmação de que muitos “manifestantes” são paramilitares treinados. Esses grupos não tinham outro objetivo senão a derrubada do presidente.

Ademais, a União Européia e os Estados Unidos agiram de maneira precipitada ao reconhecerem um governo que derrubou um presidente democraticamente eleito e que é formado, em boa parte, por esses extremistas. A justificativa para tal posição se fundava na alegação de que o governo de Yanukovich havia sido responsável pela morte dos manifestantes em Kiev. No dia 05 de Março, o vazamento de uma gravação telefônica entre o Ministro das Relações Exteriores da Estônia, Sr. Urmas Paet, e a chefe das Relações Exteriores da UE, Sra. Catherine Asthon, deixa claro que os Europeus sabiam que o início dos tiros feitos por snippers [franco-atiradores, nota do Blogueiro] partiram de grupos relacionados às milícias ultra-nacionalistas, os quais buscavam como alvo tanto as forças policiais quanto os manifestantes. Esses mesmos grupos fazem parte do governo provisório na Ucrânia. Isso reforça a alegação dos russos de que os acontecimentos de Kiev foram protagonizados por grupos que ameaçam a segurança dos russos no país e justificaria, portanto, a ocupação da Criméia. Em outras regiões da Ucrânia com maioria russa, como Donetsk e Kharkiv, já ocorrem manifestações populares pró-Rússia e, caso haja reação ucraniana, a possibilidade de uma intervenção russa em outras partes do país bastante real.

Os europeus e norte-americanos acusam os russos de serem incoerentes, de defenderem o princípio da não-intervenção em outros casos e de o desrespeitarem no caso da Ucrânia. Todavia, as comparações são qualitativamente desmedidas. Vejamos as últimas três intervenções condenadas pelos russos e lideradas pelos ocidentais.

A primeira foi baseada em mentiras – supostas ligações de Saddam com a Al Qaida e a existência de armas de destruição em massa foram comprovadamente fabricadas por setores do governo norte-americano para legitimar a invasão do Iraque, em 2003. A segunda, na Líbia, decorreu de uma divergência na interpretação de uma resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas que, segundo os russos, não autorizava a intervenção, mas mesmo assim ela foi levada adiante. O próprio fato de haver uma resolução com apoio da Rússia indica um certo grau de cooperação entre as potências para a resolução da Crise na Líbia. Na visão dos russos, sua boa vontade foi retribuída com traição por parte do Ocidente. Por último, a intervenção da Síria não ocorreu por conta da oposição russa e da proposição de um plano para a retirada das armas químicas do território sírio (posteriormente, a justificativa utilizada pelo presidente Obama para que houvesse uma intervenção armada, de que o governo de Bashar Al Assad havia utilizado armas químicas contra os rebeldes, foi comprovada falsa por um estudo de especialistas do MIT). De todo modo, nesses três casos, não existia um número significativo de cidadãos, sejam europeus, sejam norte-americanos, que estivessem em risco e pudessem justificar uma atitude belicosa contra um Estado soberano. Por trás da defesa de valores universais que legitimassem intervenções humanitárias, existiam também interesses econômicos bastante palpáveis, relacionados a fontes de energia (petróleo e gás).

No caso da Rússia, também existem interesses econômicos (gás) e geopolíticos (base de Sevastopol) em jogo, mas os termos nos quais essas questões tinham sido resolvidas nos últimos anos foram altamente favoráveis à Rússia, e não serviriam de motivação para uma ação militar. Aqui, ao que parece, as justificativas de intervenção humanitária não são vagas: existem quase 9 milhões de russos em território ucraniano, que viram sua língua ser rebaixada do status de idioma oficial do país pelo parlamento do pós-golpe, e que temem a presença de nacionalistas anti-russos no governo provisório. A atitude russa é a materialização da promessa de que nenhum russo fora do território do seu país depois do fim da URSS seria tratado como cidadão de segunda classe. De fato, existiam em torno de 25 milhões de russos fora da Rússia depois do colapso da União Soviética, e a maioria deles foram desprovidos de seus direitos básicos (propriedade, idioma, emprego, voto, etc…) durante uma boa parte desse período. Na época, a fraqueza do governo de Ieltsin e seu alinhamento incondicional com o Ocidente impossibilitaram qualquer atitude proativa de Moscou para garantir esses direitos. Embora tenha sido bastante lenta, a incorporação dos países do leste na união Européia contribuiu para atenuar essa discriminação, mas não para terminar definitivamente com ela. Pelo contrário, a UE aceitou a aberração jurídica criada pela Letônia e Estônia de chamar os russos que viviam nesses países desde a II Guerra Mundial de “não-cidadãos”, ou seja, pessoas que possuem todos os direitos dos cidadãos, mas que não possuem direito de votar ou de ocuparem cargos públicos (sim, esse é o status no passaporte dessas pessoas). Por conta desse precedente, a UE não tem legitimidade para garantir o respeito às minorias russas na Ucrânia, na visão da Rússia. Por esses motivos, uma possível intervenção russa na Ucrânia não pode ser comparada às intervenções ocidentais em outros países.

E agora, o que fazer?

Tendo em vista o que foi exposto, a afirmação que Kissinger de que a demonização de Putin por parte dos Estados Unidos serve, na verdade, como um álibi para a inexistência de uma política externa para a Rússia está correta. De fato, os interesses russos (e dos russos que habitam a Ucrânia) não foram levados em consideração pelos ocidentais. Os russos reagiram de maneira previsível para aqueles que acompanham a vida política do país e enxergam a Rússia como ela é. Já aqueles que tendem a olhar para a Rússia e enxergar “o expansionismo da antiga União Soviética,” paradoxalmente, não conseguiram vislumbrar que a possibilidade de expansão da Rússia no caso da Ucrânia era real. Um primeiro passo necessário para a resolução da crise, nesse sentido, seria o de colocar em diálogo interlocutores ocidentais que saibam enxergar uma realidade diferente e reconhecer que os interesses da Rússia são legítimos, bem como os dos russos que vivem em território ucraniano.

Um segundo passo seria o de negociar um governo de transição na Ucrânia, que não tenha a participação de partidos vinculados aos atos de violência cometidos por paramilitares armados e que desencadearam a resposta armada das forças de policiais ucranianas. Para tanto, a UE deve reconhecer o erro de ter promovido a versão de que a derrubada de Yanukovich foi legítima por se tratar de um presidente que havia utilizado a força contra os manifestantes. Isso implicaria a retirada do Svoboda do governo de transição (que, aliás, está a frente do ministério de defesa) e o ingresso de alguns dos antigos governadores das regiões russas do país no governo. Obviamente, essa medida deve ser seguida da anulação da lei que retira do russo o status de segunda língua oficial do país.

O terceiro passo é mais delicado, e consistiria em um acordo para adiar tanto o plebiscito da região autônoma da Criméia, previsto para o dia 16 de Março, quando as eleições para a presidência da Ucrânia, previstas para o dia 25 de maio. Caso os russos da Criméia optem pela anexação à Rússia, será praticamente impossível evitar a formalização da ocupação russa. Em contrapartida, esse evento levará ao crescimento eleitoral do Svoboda na disputa presidencial. Nesse cenário, a posterior anexação militar pela Rússia das outras regiões habitadas por russos será concretizada, e a reação do governo nacionalista levará o pais à guerra com a Rússia. Para evitar que isso ocorra, é necessário que haja tempo para que os ânimos se acalmem e espaço para que os EUA, a UE e a Rússia tomem medidas conjuntas para evitar o colapso econômico do país. Evidentemente, a imposição de condições aos empréstimos feitos à Ucrânia, tais como a aceitação de políticas econômicas preconizadas pelo FMI, não se aplicariam. Os recursos poderiam vir de doações de Rússia, EUA e UE, e seriam administrados em comum acordo até a situação do país se estabilizar.

Nesse ínterim, um quarto passo consistiria em autorizar, via Conselho de Segurança, o envio de Forças de Paz compostas por tropas majoritariamente russas, mas com a participação menor da OTAN, para garantir a segurança da população russa no país. Os moldes seriam os mesmos da KFOR, de atuação no Kosovo e que contou, inicialmente, com participação russa. A administração dessa força estaria sob responsabilidade do Conselho OTAN-Rússia, órgão dentro da OTAN que trata da cooperação entre eles. Isso reativaria o órgão e evitaria que anos de cooperação entre as partes fossem perdidos caso haja uma ruptura em sua relação.

Embora não sejam de fácil implementação, essas medidas podem oferecer uma alternativa pacífica à resolução da crise, sem que a soberania territorial da Ucrânia seja violada e sem que os russos que habitam o país sejam vítimas de práticas discriminatórias. Além disso, o dialogo entre a Rússia e seus parceiros Ocidentais seria mantido, e haveria tempo para que a situação da Ucrânia se normalizasse e os elementos mais extremistas dessa crise perdessem o prestígio adquirido junto a seus simpatizantes. Se medidas nessa direção não forem adotadas, os problemas em breve serão bem mais complicados e, infelizmente, apenas o diálogo não será suficiente para resolvê-los.


[1] Esse trabalho foi escrito com base em entrevistas que tenho dado sobre os acontecimentos recentes na Ucrânia e debates que tenho participado sobre o assunto em programas de rádio e televisão. Caso haja interesse em fontes sobre as afirmações desse artigo, favor encaminhar um email para: fpmiel@gmail.com


NOTAS DO BLOGUEIRO

O vazamento de conversa telefônica citada pelo Prof. acima (está sublinhada no texto) comprovando que franco atiradores que matavam manifestantes em Kiev não eram a mando do Governo Yanukovitch, e sim dos extremistas que estavam orquestrando o golpe,  está aqui neste link abaixo: 

Nenhum comentário:

Postar um comentário